Nunca transgredi um mandamento teu.” Lc 15.29b
Sou cinéfilo, não nego. Meu passatempo preferido é assistir um filme, de preferência um bom filme. Quando acerto, assisto de novo, e se puder compro o vídeo. Tenho uma inclinação especial pelos enredos que mostram pessoas que conseguem fugir de prisões, como Um sonho de liberdade, Alcatraz e O Conde do Monte Cristo. Quem sabe um dia descubro o motivo desse meu gosto por películas que mostram que situações difíceis da vida podem ser revertidas.
Tenho o hábito de comparar as coisas que leio, assisto e ouço, com os princípios bíblico-cristãos, e assim foi com o filme Os Miseráveis, baseado no romance clássico universal de Victor Hugo, principal nome do romantismo francês.

A graça maravilhosa do Senhor

Nele, o autor retrata, entre outros aspectos, a graça maravilhosa do Senhor em cenas de perdão como a que o Bispo Myriel perdoou Jean Valjean, mesmo depois dele haver roubado parte da prataria de sua casa e lhe batido na cabeça com um castiçal. Registra também a distribuição do patrimônio de uma fábrica de cerâmica para os seus funcionários, valiosas doações a um orfanato, mas acima de tudo, a liberdade da alma de um homem que cometeu um erro em sua vida, mas conseguiu se perdoar e se libertar de sua culpa. Isso é graça.
Por outro lado, há um personagem, o inspetor de polícia Javert, que se apega aos valores da lei, ao rigor das regras criadas para a convivência em sociedade, sem admitir qualquer flexibilidade na sua aplicação. Ele não consegue ver outra coisa diante de si, senão a justiça e suas punições. Busca incansavelmente prender um homem que roubou um pão, quando ainda era jovem, e por causa desse “crime”, já havia passado 19 anos na prisão. Mas porque conseguiu fugir, ainda precisava voltar para cumprir o resto de sua pena, mesmo que nesse momento de vida, seja uma pessoa bondosa, reintegrada à sociedade, proprietário de uma fábrica de cerâmicas e prefeito de uma cidade. Javert olhava a vida de forma estática, não dinâmica, que se refaz com as circunstâncias e julgava as pessoas por leis construídas por exploradores do povo. Por exemplo, no incidente entre Fantine, que se tornou prostituta, e alguns homens que a agrediram, ao invés de prender os homens que abusaram dela, manda prendê-la, pois os homens eram “cidadãos” e ela prostituta. É uma cena invertida do capítulo 8 do evangelho de João, quando Jesus se depara com uma prostituta e seus acusadores.
Mas a cena mais chocante do filme, na minha visão, é quando Javert tem um lampejo da graça do Senhor, ao soltar um militante político revolucionário, o jovem Marius Pontmercy, em seguida tira as algemas de Jean Valjan e põe em si mesmo. Nesse momento imaginei que estivesse curado do seu legalismo, mas fui surpreendido, pois ele as coloca em seus pulsos, olha para Valjean e após dizer que passou “a vida tentando cumprir a justiça rigorosamente sem nunca transgredir”, se lança no rio, dando cabo de sua vida através do suicídio. Preferiu morrer que perdoar alguém de seu erro.
Justiceiros não perdoam, culpam-se tanto que não suportam conviver em ambientes de verdadeira alegria, amor e carinho, desenvolvendo um processo destrutivo interno que os leva à morte. Estes são os verdadeiros miseráveis deste mundo, que não se reconhecem como aceitos, amados e perdoados de seus erros.
O filme termina com uma linda cena. Jean Valjean caminhando ao lado do rio e sorrindo um sorriso espontâneo, o sorriso da graça, de quem possui uma alma livre do erro, da condenação e da culpa, fazendo lembrar a frase do pai do filho pródigo, quando o rapaz voltou para casa: “estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. E começaram a regozijar-se.” (Lucas 15.24)